quarta-feira, 27 de maio de 2015

Nova Casa


Nova casa

Nova casa nascida de um grande desejo
De escrever sobre as pedras e os sinais
A história onde os filhos dão um beijo
À memória não esquecida dos seus pais

Feita do resto de manhãs onde as chuvas
Desenhavam o mapa dos seus caminhos
Entre a colheita das azeitonas e das uvas
E a adega com a aguardente e os vinhos

Feita de resto de tardes lá onde o calor
Derramava nos seus rostos uma ribeira
Entre o volume de fortes bagas de suor
E a certeza duma paixão tão verdadeira

Como aquela que afinal é testemunho
Nesta nova casa hoje enfim renascida
Não é preciso assinar pelo seu punho
Em cada pedra há o sinal da sua vida

José do Carmo Francisco

(O óleo é de Stacey Durand)

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Canção para uma noite em Évora (1938) - a Carlos Querido


Canção para uma noite em Évora (1938) - a Carlos Querido

Meu avô José Almeida na noite
Esperava em vão a carruagem
Que nesse dia partira do Barreiro
Com o cofre para pagar aos homens. 
Em Évora apenas os sons da feira
Quebravam a angústia da espera
Dos carpinteiros da Companhia
Construtores dos telhados da linha.
Poucos anos antes no Valado de Frades
Um empregado de seu pai levava
Uma égua mansa pela arreata
Ao soldado chegado de Leiria.
Hoje é diferente. Já pai de filhos
Não acredita nas palavras do chefe
Nem no apontador deste grupo
Atónito na estação da CP em Évora.
Com o bocal da trompete na mão
Aborda um jovem e pede o cornetim
Ali entre a surpresa e a ousadia
No meio do pó do baile rasgado.
Tocou a «Moreninha» e o «Teodoro»
As músicas da moda, anos trinta
Ante o aplauso geral do baile
Logo havia abafado e figos secos.  
Cinquenta anos depois contava a sorrir
Há uma fotografia dele com a bisneta
No sol de Março da nossa terra
Sem saber da morte dos comboios.

José do Carmo Francisco   

(Fotografia da autoria de Larry Silver)  

terça-feira, 5 de maio de 2015

Balada da Rua da Amargura


Balada da Rua da Amargura

Minha rua tão sozinha / Do tempo de dar o nome
Foi nas Caldas da Rainha / Do medo nascia a fome.
No dia da inspecção / Ainda havia transporte
Quando cheguei à estação / só pensava na morte.
Minha prima Deolinda / Dava-me o pequeno-almoço
Tenho o sabor hoje ainda / Do olhar em alvoroço.
Meu primo também sofria / As mesmas dores pesadas
Guia de marcha num dia / Para guerra e emboscadas.
Entre o Bairro das Morenas / Arneiros e Águas Santas
As ruas são mais pequenas / Na cidade até às tantas.
Na hora de recolher / Setenta e dois, era Abril
Não parava de chover / Porque as águas eram mil.
E nos exercícios finais / Num pinhal junto à lagoa
O mar dava os seus sinais / O destino era Lisboa.
Foi na Rua da Amargura / Entre a Praça e o Jardim
Que eu fui á tua procura / e só me encontrei a mim.

José do Carmo Francisco        

(postal antigo da Praça da Fruta das Caldas)